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Domingos Xavier Viegas: "O risco de incêndio em Portugal vai multiplicar"

Atualizado: 8 de jul. de 2022

Cinco anos depois da tragédia de Pedrógão Grande, Xavier Viegas, que estudou a fundo o incêndio, é perentório: é preciso reduzir a carga de eucalipto. Especialista defende ainda a construção de charcas para travar fogo em desfiladeiros. E confessa-se chocado com o abandono a que continua votada a floresta.




Nos anos 80, confrontado com a tragédia do incêndio de Armamar, que vitimou 14 bombeiros, Domingos Xavier Viegas começou a trabalhar nas bases para a investigação de acidentes em incêndios florestais. Nada se fazia em Portugal nessa área. Investigador e professor da Universidade de Coimbra, jubilado da vida académica em 2020, fundou em 1990 a Associação para o Desenvolvimento da Aerodinâmica Industrial, onde funciona o Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais (CEIF), e lidera atualmente o estudo europeu sobre grandes incêndios FirEUrisk – o risco que temos pela frente até com as alterações climáticas e como mitigá-lo. Em 2017, coordenou a investigação do incêndio de Pedrógão Grande, com um relatório que apontou graves falhas que contribuíram para a tragédia. Chegou ao terreno na madrugada de domingo, 18 de junho. Passam cinco anos. Em entrevista ao Nascer do SOL, confessa que é chocante ver o estado de desordenação da floresta, pronta para arder de novo.

O relatório que fizeram sobre o incêndio em Pedrógão Grande continua a ser um murro no estômago. O que sente ao revisitar aquele fim de semana de junho de 2017?

É sempre complicado retornar a essas memórias, mas é preciso. Lembro-me que o primeiro aniversário foi talvez o mais difícil, estávamos muito perto dos acontecimentos e das pessoas. Desde então tenho tentado estar sempre. Tenho recordado muitas vezes esses eventos, também a peritos estrangeiros que nos visitam, porque foram acontecimentos que motivaram muito estudo de toda a comunidade que trabalha nesta área, por isso é algo que tenho muito presente. Voltando àquele fim de semana, só me apercebi que alguma coisa estava a correr mesmo muito mal mesmo ao final do dia.

Que primeiras notícias lhe chegaram?

Nessa tarde estava fora de Coimbra, próximo da praia com a família, na Figueira. Estava muito quente e começaram a chegar informações de um incêndio para os lados de Pedrógão. Ao início nem se sabia que Pedrógão era. Não eram muito alarmantes, aliás havia vários incêndios. Quando estava a regressar a Coimbra, olhando para o interior, na direção de Castanheira de Pera e Pedrógão Grande, vi nuvens de fumo muito altas e negras, como não me lembro de ter visto alguma vez.

Chamaram-lhe a atenção.

Claramente. Às vezes veem-se nos grandes incêndios nuvens altas, mas em que a parte superior é branca, até por causa da condensação do vapor de água. Lembro-me de uma nuvem negra que parecia carvão, como se fosse de noite, e essa imagem ficou-me retida. Já à noite, tive a informação de que estavam a trazer bombeiros feridos para o Hospital de Coimbra e, como eram de corporações com quem nós temos trabalhado, a minha primeira reação foi ir lá. Encontrei vários bombeiros de Castanheira de Pera, que tinham trazido o bombeiro que viria a falecer, e pessoas que tinham trazido civis feridos. E foi só a partir daquela hora, pelas 21h30, 22h, que nos apercebemos da gravidade do que estava a acontecer. Ainda no hospital começámos a ouvir cinco, seis, dez, 13 corpos e a contagem continuou a aumentar. Voltei para casa e decidi que tinha de ir lá. De noite não iria fazer nada, mas na madrugada seguinte fui com um colega meu em direção à Estrada Nacional 236-1. Ao chegarmos, encontrámos as equipas da Polícia Judiciária e da Medicina Legal, que estavam a fazer o levantamento dos corpos. E aí foi um choque muito grande. Vi 30 cadáveres.

Era um cenário que infelizmente já tinha acontecido noutros grandes incêndios noutros países. Estudando acidentes há 30 anos, imaginava que pudesse acontecer cá?

É claro que podemos imaginar, mas nunca acreditamos que possa acontecer e que um dia o viéssemos a testemunhar. Ao longo dos anos tínhamos vindo a estudar grandes acidentes, sobretudo com bombeiros. Para se ter uma ideia, até 2017 o número de vítimas mortais entre profissionais era sempre superior aos civis e esse ano inverteu isso. Pelas nossas contas, contávamos 180 bombeiros mortos em incêndios em Portugal até 2017, desde os anos 80, e 90 civis. Em 2017 morreram 118 pessoas nos incêndios. Vimos que no nosso país podiam acontecer estas tragédias. Como disse, já tinha acontecido noutros países, infelizmente nos anos seguintes vimos tragédias na Grécia, nos EUA. Em 2021, aconteceu na Turquia e para mim um dos casos mais impressionantes foi na Argélia, onde próximo de uma aldeia morreram 87 civis. Cá, Pedrógão provocou uma enorme mudança na perceção do perigo dos incêndios rurais.

Num ano trágico, em que o que não se podia repetir aconteceu de novo três meses depois.

E perante isso só podíamos estudar e tentar perceber o que se passou e o que correu mal, o que o Governo nos pediu logo de início no incêndio de Pedrógão Grande.

Concluíram que foi uma tempestade perfeita: falta de limpeza, falta de meios de socorro, falha nas comunicações.

E com alguns fatores pouco vulgares, o que nos levou algum tempo de estudo a perceber. Passaram-se ali fenómenos que era difícil, com a ciência de que dispomos, poder prever. Quando as pessoas põem reservas em relação ao que fez a Proteção Civil, e os bombeiros, digo sempre isto.

Uma das questões logo suscitada foi porque é que a GNR mandou as pessoas seguir pela estrada onde foram encurraladas pelo fogo.